domingo, 10 de junho de 2018

Ronaldo Azeredo: poesia visual – por Antonio Riserio, 1977

Ronaldo Azeredo: poesia visual 


Desde cedo nos habituamos a reconhecer apenas na escrita verbal a capacidade de dar expressão a ideias, emoções, desejos, etc. O signo figurativo e o signo sonoro parecem inaptos, amputados ou incompletos. No entanto, uma cor nos descansa, um acorde nos entristece, nuvens escuras indicam precipitações pluviais, etc, etc. Antes de topar com novas terras, Cabral sabia que elas estavam à sua frente pela leitura de signos indiciais desta proximidade: sargaços, águas esverdeadas, etc. E se pensamos bem, os signos não-verbais são plenamente adequados à comunicação. O que não se pode exigir é que cubram o mesmo espaço informativo da linguagem escrita, já que se tratam de sistemas distintos. De resto, a poesia de nossa época, enfatizando a visualidade, não cessa de exibir as virtudes expressivas dos signos semióticos. 

É o caso, por exemplo, da produção poética de Ronaldo Azeredo. Ronaldo nasceu no Rio de Janeiro em 1937. Nesse mesmo ano, em Seattle, o compositor John Cage, apóstolo do Acaso, fazia uma palestra visionária sobre o futuro da música, pondo em relevo a dialética “ruído x som musical”. O que uma coisa tem a ver com a outra, logo se verá. Em sua fala, Cage afirmava que o som de um caminhão a cinquenta milhas por hora, o ruído de uma queda de chuva ou os chiados de estática radiofônica no intervalo entre ondas emissoras, deveriam ser utilizados em composições musicais. Mas não como “efeitos sonoros” e sim como instrumentos. E concluía: “Se a palavra “música” é sagrada e reservada a instrumentos dos séculos dezoito e dezenove, podemos substituí-la por um termo mais significativo: organização do som.“ Obviamente, a formulação cageana, embora brotando no campo específico da música, permaneceria válida se aplicada a outros ramos da criação estética. E isto sempre que novos materiais e elementos fossem incorporados à fatura de obras artísticas. 

Aqui, entra Ronaldo Azeredo. Esperneando a milhares de quilômetros de distância, numa maternidade carioca, Ronaldo nascia sob o signo de uma nova era estética anunciada por Cage. Poeta, sim, mas sem nunca ter escrito versos. E se a palavra “poesia” é sagrada e reservada a materiais poéticos de séculos passados, usemos o “termo mais significativo” de Cage, adaptando-o ao contexto: “organização da linguagem”. Ronaldo, mutante estético, é, como diria Décio Pignatari, um designer da linguagem. Há, todos sabem, um rebanho de críticos e literatos que deseja enfiar o poema numa camisa-de-força, reduzindo-o aos recursos limitados da máquina datilográfica. Mas Ronaldo já nasceu sabendo que o poema não depende necessariamente da dupla papel-caneta, podendo ser feito de palha, pano, acrílico ou sisal. Como disse Mário Faustino, a poesia é um pássaro versátil e nada “snob”, capaz de fazer seu ninho em qualquer canto. 

Se nunca redigiu versos, Ronaldo também jamais se manteve confinado ao código verbal. Partiu para arranjos poéticos construídos de letras, palavras, traços, riscos, sinais, desenhos e fotos. Em seus trabalhos, atrai, mescla e atrita códigos diversos, afastando-se totalmente, em alguns casos, da escrita verbal, para estruturar signos semióticos. Aliás, ele quer fazer da semiótica uma ótica total: o olho produtor cria e o olho receptor capta. Pensamento plástico. E não é por mero acaso que Alfredo Volpi têm contribuído para a edição de muitos desses poemas. A poesia é um vale-tudo de acaso e rigor. E Ronaldo celebra a visualidade. Alarga o campo da linguagem poética, já que a invenção, descartando estradas prontas e sinalizadas, com um posto de vigilância literária a cada cinco ou dez quilômetros, abre picadas pelo meio do mato. Com isso, não estou querendo dizer que só o visual conte, o que seria descambar pelo provincianismo carente de imaginação que caracterizou a minúscula aventura do “poema-processo”. O que desejo sublinhar é que a poesia de Ronaldo não admite restrições letradas, sendo, antes, uma espécie de radar semiotico registrando sensivelmente sinais de um momento histórico. Vejamos, por exemplo, três trabalhos: 

Velocidade – O poema revela um extraordinário sentido da forma. Um texto concreto-futurista, pelo tema e pela estrutura dinâmica de letras. Realismo de signos: o movimento veloz, decrescente, da coluna de “VV”, vai abrindo espaço para formar, na última linha, a palavra “velocidade”, que confirma, no plano semântico-verbal, o que vemos acontecer visualmente. Ronaldo retém, apreende, o movimento numa rede de signos. Móbile verbal-geométrico.

Enfim, o poema não é “sobre” a velocidade. Ao contrário, consegue representar, no corpo da linguagem, o movimento. 

Em 71, Ronaldo fez um “poemalivro” sem título. A diferença do trabalho reside, já, na forma de sua visualização. Ronaldo interfere no nível pragmático da comunicação, agindo sobre o receptor não apenas por arranjos sintáticos ou semânticos. Abrimos o folheto e lá está uma série de rostos que se repetem sofrendo modificações O primeiro é uma mulher, usando jóias. A cada repetição, as pérolas se espalham sobre o rosto, marcando-o: enfermidade. A cada desenho, acompanhamos a moléstia em sua expansão. Ou seja: a reiteração de rostos introduz o tempo e cria o contexto semântico. Catapérolas (catapora + pérolas), disse alguém. Perfeito. 

Em 73, outro “poemalivro” sem título. Um retângulo preto no centro da capa branca. Impureza no branco. Dentro, folhas semitransparentes, cinzentas, esfumaçadas. Como que poluídas. Fotos que sugerem monturos de lixo. Dez páginas onde a sujeira vai se alastrando. Virando a décima página, o choque visual de uma paisagem colorida. Neste choque, o sentido: a natureza é o inesperado. Susto amável. Os aparentes “monturos” são detalhes em branco e preto da paisagem. Canto ecológico que nos leva por páginas de uma paisagem de computadores alternada com sinais de poluição. Agora, em 76, Ronaldo trouxe mais um trabalho. Um mapa unindo ruas e lugares numa espécie de geografia sentimental. O mapa da vida, lugares onde o poeta andou, com o mar carioca quebrando numa rua paulista que passa por uma praça argentina, etc, etc. Ronaldo descobre o equivalente geográfico do tempo subjetivo, lembrando que cada pessoa possui seu próprio mapa-múndi, pontos distantes que aproxima e articula na dança da memoria. 

E muito mais haveria que falar. Mas fica para outra. Pra encerrar, lembro apenas que Ronaldo produz pouco. Confirma a tese de Paulo Leminski: os criadores são raros e raramente criam. O que é perfeitamente compreensível. Um indivíduo que cria no interior de processos mais ou menos codificados (soneto, conto, romance policial, etc), deve, naturalmente, produzir em maior volume do que o cara que necessita de um processo para cada poema. Ronaldo é um arquiteto de signos muito especial. A planta que utiliza para um trabalho é inútil para a construção de outro. O que permanece, em verdade, é o know-how da criação de processos. É exatamente por este motivo que a invenção é rara, e, não raro, desconcertante. 


Antonio Risério (GAM, Gal. Arte Moderna, 36, fev. 1977)